A Urgência do ‘Somente Cristo’ para um mundo fragmentado: Uma leitura bíblico-teológica de Colossenses 1.15-23
- André Carvalho de Oliveira
- 6 de out.
- 7 min de leitura
Atualizado: 7 de out.

por André Oliveira |
Introdução: O Coração do Evangelho
A Reforma Protestante do século XVI nos legou um conjunto de verdades que ressoam até hoje com a força de um trovão. Conhecidas como as “Cinco Solas”, elas são a espinha dorsal de nossa fé. Entre elas, o princípio do ‘Solus Christus’ (Somente Cristo) se destaca como uma declaração poderosa da suficiência e exclusividade de Jesus Cristo para a salvação de pecadores. É a confissão de que a nossa esperança e o nosso destino não estão em nós mesmos, mas unicamente n'Ele.
Em um mundo contemporâneo marcado por uma confusão espiritual sem precedentes, onde a figura de Jesus é constantemente distorcida, a mensagem do ‘Solus Christus’ emerge com uma urgência inegável. Ela nos oferece clareza em meio ao caos e um fundamento inabalável para a nossa fé.
Este artigo, portanto, é um convite para explorarmos a importância do ‘Somente Cristo’ para o nosso tempo, mergulhando na exegese de Colossenses 1.15-23. Ao fazê-lo, veremos como a compreensão da suficiência de Cristo responde, de maneira profunda e pastoral, aos anseios e desafios da nossa época.
O Contexto Histórico do “Solus Christus”: A Reafirmação da Verdade
O princípio do ‘Solus Christus’ não é uma invenção nova, mas uma redescoberta de uma verdade bíblica. Ele floresceu como uma resposta aos desvios teológicos da Igreja medieval, onde a salvação era frequentemente apresentada como um complexo processo de rituais, méritos e intercessões humanas, diluindo a obra redentora de Cristo. O acúmulo de tradições, desde o culto aos santos até a venda de indulgências, obscureceu a centralidade de Jesus.
Teólogos como John Wycliffe, Jan Hus e Gerônimo Savonarola, conhecidos como as "estrelas da manhã da Reforma", questionaram a autoridade, papal e a necessidade de qualquer mediador além de Cristo, defendendo a supremacia das Escrituras. Jan Hus, em um ato de ousadia profética, declarou: “Deixe quem quiser proclamar o contrário. [...] Só Deus, eu repito, só Deus, pode perdoar pecados por meio de Cristo.”
A faísca se tornou um incêndio com Martinho Lutero que confrontou claramente a venda de indulgências de Johann Tetzel, que prometia libertar almas do purgatório mediante pagamento. Lutero reafirmou que a justificação é “somente pela fé” (Sola Fide) em Cristo (Solus Christus), e não por obras. Em suas palavras, "o Cristo que é recebido pela fé e que vive no coração é a verdadeira justiça do cristão" e a salvação é "somente pela obra do unigênito Filho de Deus, Jesus Cristo".
Essa redescoberta foi o coração da Reforma, um retorno à verdade bíblica de que Jesus é o único mediador e o único caminho para a salvação (1Tm 2.5; At 4.12).
A Supremacia de Cristo em Colossenses 1.15-23: O Antídoto para o Nosso Tempo
A passagem de Colossenses 1.15-23 é a nossa fonte de água viva para essa sede por verdade. Ela nos oferece um vislumbre da supremacia de Jesus Cristo em todas as coisas, apresentando-o como o Senhor da criação e o Cabeça da Igreja, culminando em Sua obra redentora na cruz.
O contexto dessa carta é vital para a compreensão do problema. Paulo escreve para uma igreja que estava sendo seduzida por uma "filosofia" sincretista. Era uma mistura de elementos judaicos e misticismo gnóstico, que via Jesus como apenas mais um ser espiritual, mas não como o verdadeiro “Pantocrator”. Nossa passagem é o ápice do argumento de Paulo contra essa heresia, uma declaração enfática da total suficiência de Cristo e de seu governo
absoluto sobre todas as coisas.
As estrofes desse hino nos revelam a profundidade do ‘Solus Christus’ ao destacar:
1. A Supremacia de Cristo sobre a Criação (1.15-17)
Paulo nos ensina que a nossa adoração a Cristo deve ser tão abrangente quanto o Seu reinado, tocando todas as áreas de nossa vida. Para isso, ele nos apresenta o Cristo Cósmico:
A Sua Autoridade (v. 15): Jesus é “a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação”. A palavra "primogênito" (protótokos) não significa que Ele foi criado, mas que Ele tem a primazia e a soberania sobre todas as coisas. Isso significa que Ele é tanto o herdeiro como o governante. Já a palavra “imagem” (eikón) aponta para o fato de que Ele não é uma cópia menor, mas a perfeita revelação de Deus. Jesus é digno de nossa adoração, lealdade e temor tal como o Pai (Sl 95.3-7)
O Seu Propósito (v. 16): Tudo foi criado "nele, por ele e para ele". Essa afirmação destrói a ideia de qualquer outra divindade ou intermediário. Toda a história, poder e estrutura existem e se ordenam a Cristo. Como resume Piper: as três preposições do v.16 (“por, por meio, para”) mostram que Cristo é a origem, o meio e o alvo de tudo inclusive dos poderes que hoje nos intimidam.
O Seu Sustento (v. 17): Ele "subsiste" ou "mantém tudo unido". Ele não é apenas o Criador, mas o Senhor que governa ativamente o universo, mantendo-o em ordem. O argumento de Paulo parte da seguinte premissa: Cristo deve ser o primeiro em nossa adoração. Sua soberania abrangente exige que nossa adoração a Ele abranja todas as áreas de nossas vidas, tanto pessoal quanto corporativamente, submetendo todos os aspectos ao seu senhorio.
Isso significa dizer que nossa adoração deve ser exclusiva e nossa vocação integral. Se “todas as coisas” são para Ele, nossa vida pública e privada é um culto ao Senhor e não existe “áreas neutras”.
2. A Supremacia de Cristo sobre a Igreja (1.18)
A supremacia cósmica de Jesus se manifesta de forma pessoal em Sua Igreja. Ele é "a cabeça do corpo, a igreja". Como cabeça, Ele é a fonte, o governo, a autoridade e a direção orgânica da Sua Igreja. John Piper destaca que a Igreja existe para glorificar a Cristo, sendo Ele o seu único líder.
A nossa resposta a essa verdade deve ser de submissão e serviço. Como membros do Seu corpo, devemos renunciar a projetos eclesiásticos guiados por vaidades ou modismos e nos submeter à autoridade e aos planos de Cristo. Isso se estende a cada crente, em todas as áreas da vida.
3. A Supremacia de Cristo na Mediação (1.19-23)
Este é o ponto que nos traz alívio. Paulo não só nos mostra quem Jesus é, mas o que Ele fez por nós. Ele é o Salvador da cruz.
A Plenitude em Cristo (v. 19): “Aprouve a Deus que nele habitasse toda a plenitude”. A plenitude (plērōma) de Deus habita em Cristo, significando que não precisamos de complementos, atalhos espirituais ou sacramentos. A linguagem de "habitar" nos lembra do Tabernáculo e do Templo no Antigo Testamento, onde a presença de Deus se manifestava. Jesus é o nosso Emanuel, Deus conosco (Mateus 1.23).
A Reconciliação com o Pai é Total (v. 20-23): Cristo não apenas revela o Pai, mas nos reconcilia com Ele. Ele "fez a paz pelo sangue da sua cruz" e, por meio dela, "reconciliou consigo mesmo todas as coisas". O que antes era uma inimizade, agora se torna um relacionamento de paz. Fomos "reconciliados e apresentados 'santos, inculpáveis e irrepreensíveis'". Essa é a beleza do Evangelho. A reconciliação, embora universal em sua disponibilidade, é aplicada pela graça àqueles que a recebem pela fé.
A Necessidade do ‘Solus Christus’ no Mundo Contemporâneo
O princípio do ‘Solus Christus’ é um farol que dissipa as trevas de três desvios que assombram o nosso tempo:
O Cristo Desconfigurado da Cultura: Nossa cultura pluralista e sincretista tenta encaixar Jesus em um panteão de líderes religiosos, reduzindo-o a uma figura de pouca importância. Essa mentalidade é facilmente percebida em falas de que Jesus é apenas mais um, sem exclusividade. Mas a Bíblia é clara: há um único nome que salva de fato, e esse nome é Cristo (At 4.12).
O Cristo Ineficiente da Religião: O sincretismo religioso e a dependência de obras e esforços pessoais enfraquecem a obra de Cristo. A afirmação de São Afonso de Ligório de que a salvação seria "mais rápida se chamar por Maria, do que se chamar por Jesus" é a evidência máxima de que a suficiência de Cristo é questionada. Como D. A. Carson argumenta, a nossa justificação não depende de nossas boas obras, mas da graça e da suficiência exclusiva de Cristo.
O Cristo Falso dos Movimentos Sectários: Quando a salvação é condicionada a deter desejos, meditação ou boas obras, um Cristo falso é pregado. A obra de Cristo não é um processo em andamento que requer nossa ajuda; é um ato consumado. Ele é o único mediador (1Tm 2.5), e a salvação é somente pela Sua obra.
Cinco Atitudes Pastorais para a Igreja Hoje
A história bíblica é uma história que converge em Cristo. Ele é o último Adão, o verdadeiro Israel, o Filho de Davi, o Servo que morre e reina. O ‘Solus Christus’ não é apenas um slogan, mas a síntese de toda a revelação de Deus. Diante de tudo isso, aqui estão cinco atitudes pastorais que precisamos abraçar:
Pregue a Cristo de Todo o Texto: Faça uma exegese fiel, contextualizando-a no enredo bíblico-teológico para que toda pregação e ensino culmine na pessoa e obra do nosso Mediador.
Desenvolva uma Liturgia Centrada em Cristo: Que nossos cânticos, orações e confissões de fé reforcem a suficiência de Jesus.
Promova o Discipulado que Combate a Idolatria: Ajude as pessoas a identificar seus “salvadores rivais” (sucesso, autoimagem, política, pessoas etc.) e a substituí-los pela confiança em Cristo.
Responda ao Pluralismo com Firmeza e Amor: Proclame com clareza o Evangelho que diz: “há um só Mediador”. Argumente com a beleza e a serenidade de quem sabe que “todas as coisas foram criadas para Ele”.
Forme Líderes Cativos a Cristo: A governança eclesiástica deve estar debaixo da autoridade do Cabeça (Cl 1.18). Treine líderes com a Bíblia, não confiando em habilidades, mas no compromisso de viver e aplicar as Escrituras.
Conclusão: O Escândalo e a Esperança do Evangelho
A história bíblica é clara: em Cristo, Deus cria, sustenta, reconcilia e governa. A supremacia de Jesus é a verdade que confronta o sincretismo, o pluralismo religioso e o egocentrismo da nossa era. Ao reafirmar o ‘Solus Christus’, a Igreja é chamada a proclamar um evangelho que aponta inequivocamente para Jesus, o centro e o fim de toda a história.
O mundo, sedento por sentido e paz, não precisa de mais técnicas, atividades ou qualquer outra coisa que o afaste do principal argumento: Cristo e nada mais. O ‘Solus Christus’ é a resposta que robustece nossa adoração, fortalece nossas consciências e nos liberta da tirania dos “Cristos concorrentes”. Como a tradição reformada insiste, “um só Deus e um só Mediador”: esse é o escândalo e a esperança do Evangelho.
Referências Baiton, Roland. Cativo à Palavra. A vida de Martinho Lutero. Ed. Vida Nova, 2017.
Lutero, M. sobre Gálatas 2.16, em Luther’s Works, ed. J. Pelikan vol.26
Bay, Gerald. "The Image of the Invisible God - Colossians 1:15–23", The Gospel Coalition. Disponível em: https://www.thegospelcoalition.org/sermon/the-image-of-the-invisible-god/
Carson, D.A. "Quotes", Disponível em: http://christian-quotes.ochristian.com/D.A.-Carson-Quotes/
Piper, John. "The Supremacy of Christ in Everything", Desiring God. Disponível em: https://www.desiringgod.org/messages/the-supremacy-of-christ-in-everything
Piper, John. "Did Christ Die for Us or for God?", You Are Complete In Him. Disponível em: https://youarecompleteinhim.com/2012/08/27/did-christ-die-for-us-or-for-god-january-1-1995-by-john-piper-scripture-romans-325-26-topic-the-death-of-christ/
André Carvalho de Oliveira é pastor batista e membro da Primeira Igreja Batista em Atibaia. Por mais de uma década, serviu a pastores e líderes em diversos contextos no Brasil e internacionalmente por meio da Missão Pregue a Palavra. Ele é mestre (M.Div.) pela EPPIBA e doutorando (D.Min.) no CPAJ. É casado com Simone e pai da Isabela e da Helena.




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